Uol entrevista procurador baiano que critica projeto de trabalho uberizado

O procurador do Ministério Público do Trabalho Ilan Fonseca de Souza, que está lançando o livro Dirigindo Uber é destaque na edição digital do portal de notícias Uol desta terça-feira (02/04).

Em entrevista ao jornalista Carlos Juliano Barros, ele fala da experiência vivida para escrever sua tese de doutorado, que contou com uma imersão de quatro meses atuando como motorista da Uber na Bahia. Entre as afirmações, está a de que o projeto de lei apresentado pelo governo federal para regular a atividade é “trágico”, por não atender minimamente os interesses dos trabalhadores.

A seguir, alguns trechos da entrevista publicada como parte dos esforços para divulgação do livro Dirigindo Uber, recém-publicado pela editora Juruá:

Quanto tempo o senhor dirigiu?

Eu dirigi de 1º de dezembro de 2021 até 30 de março de 2022. Eu dirigia em média três horas por dia, geralmente pela manhã, e à tarde eu reservava para fazer a redação da tese. Em alguns momentos, eu extrapolava essa jornada justamente para testar o aplicativo, para ver se o bloqueio de 12 horas funcionava. Às vezes, eu criava metas para ver se era possível a pessoa faturar R$ 300 em um dia. Foi um total de 352 horas ao volante e de 350 passageiros neste período de quatro meses.

O senhor disse que queria testar se o limite de 12 horas funcionava e se era possível atingir as metas. A que conclusão chegou?

O bloqueio realmente funciona. Mas quem está de fora imagina que são 12 horas logadas no aplicativo. Na verdade, são 12 horas ao volante. O aplicativo consegue perceber se o motorista está em movimento ou não. Na prática, você pode ficar ao volante 12 horas na Uber, depois 12 horas na 99, e aí consegue trabalhar 24 horas de forma ininterrupta.

E a questão da renda?

A pesquisa foi deficitária do ponto de vista financeiro. Nessas 352 horas de viagem, eu faturei R$ 4.886. Mas, quando abate o valor do combustível (eu rodei exclusivamente na gasolina), o valor foi para R$ 1.855. Quando eu fiz o cálculo de outras despesas, como IPVA, o valor da habilitação (eu precisei tirar uma habilitação específica para conter o EAR, o exercício de atividade remunerada), os gastos com celular, eu obtive um prejuízo de R$ 1.346.

A Uber faz questão de tornar esses gastos invisíveis para o trabalhador: desgaste com pneu, com troca de óleo. Mas o motorista prefere não enxergar porque, de alguma forma, é vantajoso ter dinheiro na mão. É vantajoso pagar a gasolina com o cartão de crédito e, no final do dia, já receber os valores das corridas. Então, eles vão se precarizando e os automóveis vão se deteriorando.

O STF está em vias de julgar a existência de vínculo empregatício entre aplicativos e motoristas. O argumento central das plataformas é de que não existe subordinação e de que o motorista é livre para fazer o seu próprio horário. Qual é sua avaliação?

Esse é o ponto central da minha tese. O meu foco foi verificar se motoristas de aplicativo recebem ordens, se são fiscalizados e se podem ser punidos por esse empregador. Então, o que a Uber faz como estratégia? Ela emite uma série de ordens, não apenas pelo aplicativo, mas também por e-mail. "Você está parado no final de semana? Venha trabalhar para a gente". Ou "você já parou para pensar que domingo é o melhor dia de trabalho?" Ou "você está parado aí há muito tempo. Desloque-se para tal lugar que lá as corridas estão simplesmente ótimas".

A Uber vai tentar dar uma aparência de que isso é uma sugestão. Isso acontece o tempo todo. Então, o motorista é pego de surpresa no momento em que recebe advertências, suspensões e banimentos, porque imagina que realmente aquilo que foi emitido é uma mera orientação. E ele realmente acredita que está sendo autônomo.

No período da pandemia, eu precisava diariamente tirar uma foto do meu rosto para que a Uber visse que eu estava usando máscara. Se eu não usasse essa máscara, eu não poderia trabalhar no aplicativo. A Uber faz inspeções para verificar se você é você mesmo. Então, ela faz uso de uma série de prerrogativas típicas de um poder patronal, mas fica o tempo todo falando em empreendedorismo. O trabalhador se sente autônomo, mas trabalha 12, 14, 16 horas por dia.

O que o senhor achou do projeto de lei (PL) do governo para regulamentar a atividade dos motoristas de aplicativo?

O projeto de lei apresentado foi trágico. Eu tive a possibilidade de participar, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), do grupo de trabalho [montado pelo governo federal, em Brasília, para tentar costurar um acordo com representantes de empresas e trabalhadores]. A gente tinha muita esperança de que fosse um projeto, ainda que não houvesse reconhecimento do vínculo de emprego, que conseguisse atender aos interesses da categoria dos motoristas. Parece que as representações [dos trabalhadores] que ali estiveram não tinham essa legitimidade em relação a toda a base da categoria, e o projeto parece atender 100% os interesses das plataformas.

A Uber entrou no país desafiando todas as regulamentações. E agora, no momento em que tinha a oportunidade de trazer dignidade aos trabalhadores, o governo parece que conciliou com essas plataformas para não comprar briga com ninguém.

O que mais me preocupa é o fato de se estar criando no Brasil um terceiro gênero em que você não é nem autônomo, nem trabalhador com carteira assinada. Você tem um trabalhador hoje que é de uma grande rede varejista e ele trabalha de forma subordinada, com ordens verbais diretas. Essa rede varejista vai falar assim: "e se a gente criar uma plataforma digital?". Então, ela vai fazer uma construção jurídica para dizer "olha, a nossa situação é muito semelhante à da Uber. Ele trabalha com metas, ele se apresenta aqui no horário que quiser. É uma coincidência que ele apareça aqui sempre das 8h às 18h". Isso representa um precedente perigosíssimo. O Brasil já vive com um índice de informalidade que beira sempre a 40%.

O senhor disse que, ainda que não houvesse o reconhecimento do vínculo, se esperava que fosse um projeto de lei um pouco mais benéfico para os trabalhadores. Mas o que poderia ter sido feito?

Quando a gente começa a acompanhar as redes sociais dos motoristas, fica bem claro que eles querem a limitação dos poderes das plataformas. Eles querem transparência, querem saber quais são os critérios de direcionamento das corridas. Querem saber os motivos pelos quais eles estão sendo banidos. Querem melhores valores pelas corridas. Então, querem que, de alguma forma, governo e autoridades comecem a limitar todos os poderes, muitos deles arbitrários, que as plataformas impõem hoje a essa categoria.

Há muitos motoristas contrários ao registro em carteira nos moldes da CLT e à representação por sindicatos, para negociar com as empresas. Por quê?

É a questão da desinformação. O mundo jurídico não conseguiu ainda explicar para a categoria de motorista de aplicativos qual é a importância da CLT, quais são os limites da CLT, o que a Uber pode fazer ou não depois da CLT. Veja os protestos [da semana passada]: eles são contra o sindicato. Mas o que eles estão fazendo ali? Lutando por melhores direitos, lutando por melhores remunerações - isso é a pauta sindical número um. Muitos deles dizem: "nós não queremos políticos". O que eles estão fazendo ali se não é política? Então, esse aspecto da desinformação é muito forte e esse estranhamento entre os atores ainda é muito grande.

 

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