Procurador-chefe do MPT na Bahia defende trabalho digno no 1º de maio

Em entrevista concedida ao jornalista Divo Araújo e publicada na edição de 1º de maio de 2023 do Jornal A Tarde, o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT) na Bahia, Luís Carneiro, defendeu o aperfeiçoamento das instituições para fazer frentes aos novos desafios impostos pelo mundo do trabalho.

Ele chamou a atenção para fenômenos que estão transformando de maneira intensa as relações de trabalho, como a uberização e a quarta revolução industrial. Destacou que a legislação e as próprias ins5tituições como o MPT precisam se adaptar a essa nova realidade para contribuir com a garantia do trabalho digno.

Confira a seguir a transcrição da entrevista.


 

Qual é o impacto das novas tecnologias no mundo do trabalho? Como proteger os direitos das pessoas que tiram seu sustento levando e trazendo clientes dos APPs de transporte? Após cinco anos de Reforma Trabalhista, o que mudou na vida do brasileiro? Trabalhar em home office é positivo para saúde mental?

Hoje, 1º de Maio, Dia do Trabalho, ouvimos alguém que lida no seu dia a dia com essas questões para refletir para onde estamos caminhando nas relações entre empregado e empregador – o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT) a Bahia, Luís Carneiro, atualmente em seu terceiro mandato à frente do órgão.

Nesta entrevista exclusiva ao A TARDE, Carneiro trata desses e outros assuntos relacionados ao mundo do trabalho. E, em todos, defende a mesma tese: é preciso sempre colocar como prioridade a dignidade do trabalhador. Acompanhe o procurador-chefe do MPT na entrevista que segue.

*  *  *

O senhor completa agora cinco anos como procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT). Nesse período, sobretudo pelo advento e a consolidação de novas tecnologias, houve mudanças radicais no mundo do trabalho. Como o MPT vem se preparando para esses novos desafios?

Essa jornada à frente do Ministério Público do Trabalho nos proporcionou um aprendizado muito grande e uma possibilidade de entender melhor como funcionam as relações de trabalho no nosso querido estado da Bahia. E dentro desses desafios que surgiram, e foram inúmeros, nós podemos apontar, sim, a quarta revolução industrial, a indústria 4.0, com um grande desafio, não só para o Ministério Público do Trabalho, mas para todo o sistema de Justiça e a própria sociedade. Quando a gente fala de indústria 4.0, a quarta revolução industrial, a gente tem que fazer uma reflexão sobre o trabalho digno no contexto dessas novas tecnologias. E pensar um pouco naquilo que está por vir. A quarta revolução industrial já é uma verdade. Estima-se que 65% das crianças que hoje entram nas escolas vão trabalhar com profissões que sequer existem. E um quarto dos empregos formais de hoje deixarão de existir até 2025. São números realmente que despertam uma necessidade não só de reflexão, mas também de movimentações sociais para acomodar tudo isso. Não é negar os efeitos da quarta revolução industrial, algo disruptivo que muda completamente a forma e o modo de trabalho, mas se adaptar a esses novos tempos.

Muito se fala hoje da “uberização” das relações de trabalho...

Se você observar a maior empresa de transporte de pessoas do mundo, a Uber, ela não tem um motorista sequer no seu quadro formal de contratados, salvo aqueles que tiveram por ordem judicial, reconhecido o seu vínculo. Mas eles são poucos ainda em relação a todo o universo dos colaboradores que estão a serviço da companhia. Se você pegar hoje a maior empresa hoteleira do mundo, a Booking.com, ela não tem um leito de hotel, um quarto. Não tem um trabalhador formalizado dentro de um estabelecimento de hospedagem. São situações que precisam ser melhor entendidas para que a gente consiga alcançar, antes de mais nada, a dignidade desses trabalhadores. Eles não podem apenas serem utilizados como uma força de trabalho, sem uma contribuição e uma retribuição do sistema, como um todo, digno e que proporcione um trabalho decente e uma segurança naquilo que estão executando. É importante essa reflexão por parte do Ministério Público do Trabalho, que tem a sua função essencial de salvaguardar os direitos fundamentais dos trabalhadores e das trabalhadoras. Mas também é necessária uma reflexão de toda sociedade. Aonde queremos chegar, como queremos chegar, como faremos para chegar nesse ponto. E o que precisamos fazer para que as pessoas, porque são pessoas que estão ali, atinjam um patamar mínimo civilizatório com dignidade, com decência no trabalho, e com respeito absoluto aos seus direitos fundamentais.

O mundo digital trouxe horário flexível, produção flexível, sistema de regulamentação de trabalho flexível. Tudo isso leva a uma desregulamentação das relações de trabalho?

Isso que é preciso se debruçar o parlamento, junto com o Poder Executivo, com a contribuição do sistema judicial. Não só do Poder Judiciário, mas o próprio Ministério Público tem muito a contribuir com esse debate. É preciso encontrar mecanismos de proteção. O ponto central é esse. Há uma discussão muito forte hoje, por exemplo, nessa questão da “uberização”, que não é só a Uber, porque tem várias empresas que fazem parte desse fenômeno, se esses trabalhadores preenchem ou não os requisitos do vínculo empregatício. A gente tem que se movimentar no sentido de uma construção, primeiro, de uma proteção para esses trabalhadores. Não dá para fechar os olhos para as situações que acontecem. A pessoa trabalha 12, 13 horas por dia e não tem nenhuma garantia do que vai acontecer no dia seguinte. Se sofrer um acidente de carro, na condução e no exercício do seu labor, não tem proteção nenhuma. Se ficar doente porque tem uma jornada exaustiva de 14 horas e está rendendo benefícios para todo o sistema, ela não tem o mínimo de garantia do que vai acontecer. Se tiver um problema de coluna, porque o banco não é o ideal, ou se sofrer um acidente automobilístico e quebrar uma perna ou algo mais grave e precisar ficar internado, ele não terá proteção nenhuma do sistema. Porque, infelizmente, não há o amparo previdenciário como deveria existir, porque não há formalização do vínculo. E não há uma cultura de adesão ao sistema como autônomo previdenciário. Essas situações já foram flagradas inúmeras vezes pela imprensa. A exemplo daquela foto escabrosa de um trabalhador, uma pessoa que produz para nação, com um anteparo de ferro exposto na perna e em cima de uma bicicleta, com a mochila atrás da entrega rápida. Se ele tomar um tombo, seguramente vai se acidentar de uma forma muito grave. Mais do que já está acidentado na verdade. Isso é só um fato para a gente ilustrar a dificuldade de conseguir encontrar um ponto de equilíbrio. O caminho é construir um amplo diálogo social com empregadores, empregados, autoridades e instituições que têm o poder de decisão, e aí inserindo obviamente o Ministério Público do Trabalho. Não inviabilizar a atividade. Não é papel do Ministério Público e de nenhuma outra instituição. Mas, sim, tentar encontrar um ponto de equilíbrio para que a gente possa proporcionar a rentabilidade das empresas, mas também - e aí, sim, é o ponto central até por força da nossa Constituição Federal - colocar no centro do sistema a pessoa humana e a sua dignidade. Mas não há fórmula mágica.

Com tudo que está posto aí, o Ministério Público, a Justiça, estão de mãos atadas para agir?

Não diria de mãos atadas, mas existe uma dificuldade para que a gente possa alcançar aquilo que entendemos ser razoável. O Ministério Público do Trabalho tem suas bandeiras, nós lutamos diariamente, combatemos com muita energia a precarização das relações de trabalho. Quando a gente fala da “uberização” do sistema e dos modelos de produção, nós temos que, acima de tudo, buscar a dignidade do trabalhador. As palavras de ordem são buscar enfrentar a precarização das relações de trabalho e buscar um ponto de equilíbrio, sem viabilizar a atividade. Porque é uma atividade que trouxe benefícios de alguma forma, enquanto serviço prestado à sociedade, pela facilidade que traz. As mudanças no mundo do trabalho acontecem de uma forma cada vez mais rápida. Mas elas precisam se enquadrar dentro de uma possibilidade normativa que nós temos de legislação e sempre tendo como foco que a pessoa é o principal elemento desse sistema e não o serviço em si. É preciso primeiro proteger as pessoas que estão ali dando seu suor. A partir daí, conseguir acomodar as ansiedades do sistema produtivo, mas sem esquecer o mais importante da relação, que são as pessoas e os trabalhadores.

Saindo um pouco do tema da tecnologia, mas falando de outra tendência, essa acelerada pela pandemia da Covid-19, que é home office e o trabalho híbrido. Quais são as violações dos direitos do trabalhador mais comuns nesses regimes de trabalho?

O modo de organizar a força do trabalho sofreu realmente grandes mudanças. A pandemia funcionou como um acelerador de partículas. Avançamos 15, 20 anos nesse período. O home office já era uma tendência mundial, mas foi acelerado muito fortemente com a pandemia. As pessoas forçadamente tiveram que ficar nas suas residências e precisaram continuar trabalhando e entregando seu resultado. O MPT obviamente não é contra o teletrabalho. Porém, mas mais uma vez nós precisamos ter em mente a necessidade de assegurar a dignidade da pessoa. A gente tem uma leitura muito clara do que aconteceu. O movimento da pandemia, a força de algo que veio inusitadamente para todo o globo terrestre, forçou uma situação de confinamento das pessoas. Esse confinamento não podia ser dissociado da relação ao trabalho, porque as pessoas teriam que continuar produzindo. Mas o que a gente nota é uma crescente muito forte do adoecimento mental das pessoas. O teletrabalho tem muitos benefícios. Proporciona um ganho de qualidade de vida, quando é dosado e acordado entre as pessoas. Mas quando ele é mal utilizado, essa ferramenta de gestão que é tão importante e que fatalmente chegaria para todos, traz em si uma carga muito forte na necessidade de você ter uma atenção maior ao psíquico dos trabalhadores. O adoecimento mental é uma verdade hoje, talvez uma das maiores causas de afastamento do trabalho. Se você for comparar os números, você constatará um crescimento exponencial dos casos. E isso decorre muito dessa forma disruptiva do modelo de produção. Tem uma associação muito forte e a gente tem que ter, enquanto instituição que zela pela dignidade dos trabalhadores, uma atenção muito forte. O adoecimento mental é algo que vem despertando muita atenção no Ministério do Trabalho, pela sua crescente num curto espaço de tempo, que está de alguma forma associada com o fim da pandemia, com uma pressão maior no trabalho. Precisamos também encontrar um ponto de equilíbrio para que a gente possa continuar produzindo sem adoecer as pessoas ainda mais.

Agora também completam 5 anos da Reforma Trabalhista aprovada no governo do então presidente Michel Temer. Quais foram os principais efeitos produzidos pela reforma?

O dia da posse do nosso primeiro mandato coincidiu com o primeiro dia de vigor da Reforma Trabalhista. Eu considerava que seria o maior desafio de nossa gestão à frente do Ministério Público do Trabalho, mas tive uma surpresa porque veio a pandemia, logo depois que tomamos posse no segundo mandato. A dinâmica das relações de trabalho proporciona desafios aos gestores e a todos aqueles que se envolvem com a temática. E a gente nunca sabe quais serão as cenas dos próximos capítulos. Com certeza, a Reforma Trabalhista foi um desafio muito grande para todos que estão envolvidos no sistema de Justiça. Algo que veio com uma força muito grande naquilo que já se tinha como uma tradição histórica das relações de trabalho. Algumas conquistas levaram anos para serem alcançadas e, de repente, em uma canetada, a gente vê todo um trabalho alcançado a suor e sangue de muitos trabalhadores, de alguma forma desviado. Mas a reforma deve ser analisada no seu contexto global e traz alguns benefícios naturais, porque alguns ajustes precisavam ser feitos. Essa necessidade de acomodação é natural, porque a dinâmica das relações sociais exige isso. Uma legislação trabalhista não vai durar eternamente, em algum momento ela vai precisar ser revista. Mas a gente tem que lembrar que a própria CLT, ao longo dos anos, ela é da década de 40 do século passado, foi modificada em quase 80%. A legislação trabalhista vinha se acomodando ao longo do tempo. No primeiro momento da reforma, houve um esvaziamento dos fóruns trabalhistas. Os corredores da Justiça do Trabalho, no dia a dia, esvaziaram bastante. Mas houve já uma retomada. Alguns pontos de excesso da reforma já foram julgados inconstitucionais pelo próprio Supremo Tribunal Federal. E há uma acomodação natural das interpretações daquilo que está na letra fria da lei. O Poder Judiciário, com o Ministério Público do Trabalho, empregou algumas interpretações que possibilitam a gente manter a dignidade do trabalho.

O senhor considera que alguns pontos da reforma, a exemplo do trabalho intermitente, contribuíram para a precarização do trabalho que a gente tratou no início da conversa?

O trabalho intermitente foi algo que o legislador apostou muito, na época, mas não foi algo que a gente poderia dizer que pegou. Os números são muito baixos. Não foi algo revolucionário como se vendeu na época. A reforma vendeu muitas entregas e, de fato, entregou muito pouco daquilo que foi dito. Isso é um fato. Obviamente que algo foi modificado, emplacou e pegou. Mas muito do que foi prometido não foi entregue. E o trabalho intermitente, que foi uma aposta muito alta, no dia a dia, não colou. Você pega os números e eles são absolutamente irrisórios. Não modificam em nada o modelo de organização da relação de trabalho.

Outra questão que, inacreditavelmente, continua muito atual é o problema do trabalho escravo. Em fevereiro, 207 trabalhadores, a maioria negros e baianos, foram resgatados em condições análogas a escravidão de vinícolas do Rio Grande do Sul. Como está essa situação hoje?

O trabalho escravo é uma feição cruel de uma chaga social que assola o país ainda muito fortemente. É você tirar o básico daquela pessoa que dá o seu suor. Mas para você conseguir enquadrar determinada situação como trabalho escravo, envolve uma atuação muito responsável de uma rede de proteção do trabalho decente. Não é um órgão apenas que resume essa atividade. É uma rede de proteção que envolve diversas instituições, dentre elas o Ministério Público do Trabalho, junto com a Justiça, a secretaria do próprio estado, do governo do Estado, a Polícia Federal, a Defensoria Pública. Os números são estarrecedores. Se você pegar de 1995 até hoje você vai encontrar mais de 50 mil pessoas resgatadas no Brasil. E a Bahia, infelizmente, é um dos estados que se encontram nas posições mais altas desse ranking. São mais de 3,5 mil trabalhadores resgatados nos últimos 20 anos. A Bahia é celeiro, infelizmente, para uma gama forte de trabalhadores escravos, que são resgatados aqui no nosso território, mas também ocupa uma posição alta no ranking quando você busca a origem das pessoas que são resgatadas pelo Brasil. Nós ocupamos o sexto lugar onde os trabalhadores mais são resgatados e somos o terceiro estado de origem dos trabalhos que são resgatados pelo país afora. O trabalho é muito forte aqui dos órgãos de proteção, mas a situação não é simples. No caso do Rio Grande do Sul, fizemos questão de acompanhar o procurador-geral do Trabalho de lá na visita ao governador Eduardo Leite. Assim como também trouxemos o procurador-geral do trabalho para vir aqui Bahia e ter uma conversa institucional com o governador Jerônimo Rodrigues. Então é preciso que as instituições se articulem para que façam um trabalho, não só preventivo, mas também repressivo nessa situação.

Esse caso do Rio Grande do Sul foi muito emblemático?

Sim, porque quando você tem um caso como o das vinícolas do Rio Grande do Sul, você consegue entender melhor a sociedade. E ela consegue entender melhor que a chaga do trabalho escravo não tem preconceito em relação à cor, à condição social, ao tipo de atividade. A gente poderia imaginar que no Sul, uma região rica do país, numa vinícola, uma cultura nobre, você não teria a prática de trabalho escravo. Nós consideramos esse caso como o mais emblemático da história do MPT. E não é uma questão de números, porque existem resgates maiores. Nesses foram 207 e nós temos resgates que beiram os mil trabalhadores. A repercussão financeira desse acordo foi da ordem de R$ 11 milhões. Nós temos acordos que são infinitamente maiores que esse em relação a números. Mas esse caso foi o que trouxe a maior repercussão. A própria imprensa pautou isso durante duas ou três semanas. E pela reação da própria sociedade, que cada vez mais não tolera esse tipo de atividade. Nós não sugerimos, nem incentivamos nenhum tipo de boicote, mas vimos a sociedade recusar os produtos daquelas empresas em decorrência da opção que elas fizeram. E há um ganho muito grande nesse acordo que foi celebrado com essas vinícolas pelo Ministério Público do Trabalho. Pela primeira vez, de uma forma muito clara, essas companhias que têm faturamento bilionário passaram a se responsabilizar por toda cadeia produtiva. É uma resposta ao que nós chamamos tecnicamente da cegueira deliberada, na qual o produtor, o empresário, o empregador, fecha os olhos para tudo que está acontecendo fora daquele perímetro de atuação geográfica, dentro do da planta industrial dele. Se o empresário terceirizar uma parte dessa produção, por exemplo, o plantio é feito em outro local por trabalhadores que não são diretamente subordinados, ele fecha os olhos para aquela situação que está acontecendo, apesar de se beneficiar da produção. Por meio desse acordo, as empresas, as três vinícolas, se obrigam a se responsabilizar por toda a cadeia produtiva de ponta a ponta. É um ganho muito grande.

Quando se fala em sustentabilidade no agronegócio se fala também no conceito de “condições de trabalhos responsáveis”. Esse segmento, de extrema importância para a economia do país, vem cumprindo este requisito?

A base é a mesma para qualquer tipo de atividade. Acima de tudo tem que estar à busca por um trabalho decente. E você tem diversas formas de fazer isso. E não é diferente pro agronegócio. O agronegócio é importantíssimo pro Brasil, nós temos um país continental, a Bahia é um estado imenso, mas nós precisamos fazer disso uma oportunidade para gerar empregos decentes. Não apenas uma oportunidade para buscar o lucro e a satisfação financeira de determinado segmento. E uma coisa está atrelada a outra, porque quanto mais você consegue oferecer dignidade para os trabalhadores, mas eles vão produzir. O aparentemente parece ser um custo, oferece um retorno muito grande para a atividade. Não só para o agronegócio que emprega milhões de pessoas e é a cara do Brasil para diversos segmentos de exportação. Ele tem uma função essencial dentro da nossa conformidade do sistema capitalista. Mas é preciso que, diante dessa consciência de que optamos por um sistema capitalista, tenhamos o equilíbrio para entender que, para haver o maior retorno dessa atividade, nós temos que fazer o investimento naquilo que é mais importante e não são as máquinas, são as pessoas. Mesmo nessa indústria 4.0, que conversamos aqui, as pessoas continuarão existindo para operar as máquinas, produzir as máquinas, pensar em máquinas novas. O agronegócio não é diferente de nenhum outro segmento nesse aspecto. Ele tem que investir para capacitar essas pessoas, para evitar os acidentes de trabalho que são comuns neste tipo de segmento infelizmente.

Os acidentes de trabalho ainda são um grande problema no Brasil?

Sim e é preciso lembrar um número que é muito triste. O Brasil é o quarto país do mundo em acidentes fatais de trabalho. Esse é um dado trazido pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) e é uma posição que o Brasil ocupa há mais de uma década. São anos a fio ocupando a quarta posição em acidentes fatais no mundo e nós não conseguimos mudar essa cultura. É preciso fazer investimento e aí, sim, no agronegócio, mas também na construção civil, por exemplo. Por mais paradoxal que possa ser um dos grandes líderes de acidentes de trabalho é o setor de saúde, os hospitais. Nós precisamos mudar uma cultura. Precisamos criar primeiro, uma cultura de prevenção. São necessários investimentos, capacitação. É necessário o cumprimento de normas regulamentadoras, que requerem investimento financeiro. Essas normas não estão ali do nada. Elas foram pensadas por experts na situação, com a contribuição de todos os setores, inclusive do dos empregadores. É preciso cumprir essas normas para evitar esses acidentes. E o equipamento de proteção individual, é o último expediente dessa pirâmide. Primeiro, é preciso um investimento na captação, no cumprimento das normas regulamentadoras, na implementação das comissões de prevenção de acidentes de trabalho. Você precisa fazer investimento também nos equipamentos de proteção coletivas e, falando aqui de uma forma ilustrativa, a proteção na construção civil para que o trabalhador não caia da construção de um edifício vertical, do 10º andar de uma obra. Você tem os exames periódicos dos trabalhadores, o exame admissional, o demissional. Existe uma rotina a ser seguida. E a partir daí a gente começa a mudar uma cultura. Digo mais uma vez aqui que precisamos entender que trabalhador não é custo, ele é investimento na pessoa que produz para uma nação. É ele que vai transformar a nação. Não tem milagre: sem pessoas, não há transformação. Nós temos que internalizar esse processo e colocar dentro das nossas planilhas orçamentárias para que esses investimentos que tragam um retorno maior. Porque hoje se um trabalhador morreu dentro da sua obra, dentro da sua fazenda, dentro do seu estabelecimento de saúde, você terá um custo gigante em relação a isso. Primeiro o custo da consternação absoluta daquele quadro de pessoal que está ali envolvido. Os trabalhadores vão ficar assustados e consternados porque perderam um colega. A vem a questão da família. Você ceifa a vida de uma família toda porque quando morre uma pessoa num acidente desses e como se morresse a família também. Nós tivemos nos últimos anos uma média de mais de cem acidentes fatais na Bahia. Quando falamos de acidentes que não são fatais, temos uma média de um acidente de trabalho, a cada 44 minutos na Bahia. E a cada 54 segundos no Brasil. É uma mudança de cultura necessária e para ontem.

Para concluir, o governo Lula apresentou em março um projeto de lei para garantir a equiparação salarial entre mulheres e homens que exerçam o mesmo cargo. O MP e a Justiça estão preparados para garantir a efetividade dessa medida, caso seja aprovada no Congresso?

Quando a gente fala nessas questões de equiparação de gênero que são tão caras ao Ministério Público do Trabalho, nós estamos pensando primeiro em evitar e combater a discriminação nas relações de trabalho. Vem se notando um avanço social como um todo, mas existe ainda muita resistência. Os números são muito claros. É inadmissível que um homem receba mais para fazer a mesma atividade que uma mulher, pelo simples fato dele ser do sexo masculino. É algo que a gente não pode compreender nos dias de hoje. Iniciativas legislativas ajudam, mas não resolvem. É preciso que a sociedade compre essa briga, vista essa camisa e realmente busque essa equiparação social. Não vamos falar só em equiparação salarial porque é muito mais do que isso. É respeito na atividade, é olhar para uma pessoa do sexo feminino e compreender que ela é capaz de exercer aquela atividade tão bem como qualquer homem. E aí você entra em outros tipos de discriminação, como a própria questão da raça, da religiosidade. São questões que ainda existem no nosso país. Mais uma vez é mudança de cultura. É um investimento de atuação finalística do Ministério Público do Trabalho, nós temos isso como uma bandeira nacional. São oito coordenações temáticas no Ministério Público do Trabalho e uma delas é voltada ao combate da discriminação nas relações de trabalho. Tem a situação das pessoas com deficiência também, que precisam também ter suas barreiras sociais quebradas e para que possam alcançar altas posições. A gente teve um início de mudança muito grande quando a gente vê pessoas com deficiência nos caixas de supermercados, embalando as compras, ou no guichê de um balcão de uma companhia aérea. É óbvio que é uma posição muito importante, como todas as outras em sua dignidade. Mas a gente precisa ver com naturalidade também uma pessoa com deficiência ocupando o cargo mais alto de uma companhia, de uma indústria, de um estabelecimento de saúde. Porque são tão capazes quanto as outras pessoas. Não é o fato de ser negro, de ser mulher, de aderir a uma determinada religião, possuir alguma deficiência, que torna aquela pessoa mais ou menos capaz. Temos que buscar igualdade entre as pessoas e a igualdade, sobretudo, de oportunidade. Quem diz que vai chegar, onde vai chegar e como vai chegar é a própria pessoa, mas a largada tem que ser igual. O destino que ela vai chegar dependerá das oportunidades que aparecerem e, para isso, o jogo tem que ser igual para todo mundo.

Imprimir