ARTIGO - Empregadas do lar, dignidade já!

Em artigo publicado na edição desta sexta-feira (03/09) do jornal A Tarde, aqui reproduzido, o procurador-chefe do MPT na Bahia chama a atenção para a gravidade do fato de convivermos em muitas residências com situações que podem ser enquandradas como análogas à de escravo e conclama a sociedade para promover uma onda de legalização do trabalho doméstico no Brasil.

Doméstica: substantivo feminino. Mulher que se emprega em trabalhos caseiros; empregada, criada. Trata-se de categoria profissional formada massivamente, sobretudo no Nordeste, por mulheres negras de elevada vulnerabilidade social.

O cenário da pandemia é terreno fértil para práticas cruéis dentro das casas. As instituições que tutelam o mundo do trabalho, a exemplo do Ministério Público do Trabalho, se deparam com situações cada vez mais constantes de assédio moral doméstico e, pasmem, trabalho forçado no ambiente residencial. Referida prática nefasta pode levar ao enquadramento como uma condição análoga à de escravo, criminalmente tipificada (artigo 149 do Código Penal).

Os ilícitos não se limitam ao excesso irregular de horas extras, à ausência de intervalos durante e entre as jornadas, à não concessão de férias ou ao não registro formal da trabalhadora ou do trabalhador e consequentes recolhimentos. Vai muito além! A violência à dignidade da pessoa humana que se emprega em trabalhos domésticos é cada vez mais presente nas inspeções realizadas pelos órgãos de controle. Nessa perspectiva, a denúncia se revela fundamental. Ela pode e deve ser feita pela vítima, vizinhos ou colegas de trabalho. Quanto antes chegar a informação, maior a possibilidade de ação da rede de proteção e a possibilidade de redução de danos.

O cárcere privado e a restrição de locomoção no serviço doméstico não são recentes. Cuida-se de uma prática silenciosa que viola a dignidade do trabalhador e o distancia do patamar civilizatório mínimo. Despir um empregado dos seus direitos fundamentais atinge e ofende a sociedade como um todo.

Situações estarrecedoras somam fileiras tanto no passado, como no caso “Gabriela” (resgate em 2008), quanto no presente, a exemplo dos casos “Luiza Geraldo”, “Leda Lúcia” e “Valdeci”, trabalhadoras domésticas resgatadas em Salvador em 2021, em operações contra o trabalho escravo realizadas pela Superintendência Regional do Trabalho e Ministério Público do Trabalho, além de outras instituições. Em 2020, foram 936 trabalhadores resgatados no Brasil, sendo 64 em território baiano.

O velho discurso de “fazer o favor de trazer uma menina do interior para dar oportunidade para ela” e utilizar-se dessa premissa para violentar a dignidade alheia, se é que já encontrou eco em outra época, não pode mais ter espaço na consciência coletiva, tampouco conta com a complacência do MPT ou de órgãos fiscalizadores.

Nenhuma forma de manifestação de trabalho escravo contemporâneo deve ser tolerada. Torna-se imprescindível uma onda de legalização do trabalho doméstico brasileiro. Precisamos de um grito da sociedade. Todos somos iguais em dignidade!


Luis Carneiro
Procurador-chefe do MPT na Bahia

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